Ficha Técnica

plus minus gleich
Historial

Carnaval abrasileirado? Não, obrigado!

Julgamento e Morte do Galo - 20101. As cerimónias carnavalescas derivam de ritos ancestrais de transgressão dos costumes caracterizados por excessos e liberdade sem peias, que produziam um corte abrupto na ordem natural e rotineira das comunidades.

Até à década de 70 do século passado, na cidade da Guarda, os festejos do Carnaval eram simples saídas à rua de pequenos grupos de folgazões que, mascarados ou travestidos, abordavam os transeuntes e os mimoseavam com esguichos de água, serpentinas, papelinhos multicolores ou busca-pés. À socapa, o rapazio lançava bombas ou metia medo às raparigas desprevenidas, mostrando-lhes de chofre simulacros de animais repelentes. Nas escolas, os alunos mais atrevidos lançavam na sala de aulas bombinhas de mau cheiro, que obrigavam à paragem das actividades lectivas.


Este panorama, se lhe juntarmos o lançamento de cocottes e tremoços à cara dos passantes e as partidas que os miúdos lhes pregavam roubando-lhes os chapéus, não é muito diferente do que caracterizava o Carnaval lisboeta do final do séc. XIX, como nos é relatado pelos jornais da época. Numa altura em que na região saloia dominavam as cegadas – semelhantes às choradelas ou casamentos do Entrudo, habituais nalguns povoados da Beira –, estes desmandos e as situações de violência que ocasionavam conduziram inevitavelmente a proibições, multas, prisões e ao próprio declínio do Entrudo.

Nos tempos mais recentes, o desfile carnavalesco, na Guarda, viveu essencialmente da azáfama dos jardins de infância e escolas, que obrigavam as crianças a andar numa fona (e a submeterem-se ao rigor invernoso), na ânsia de, num espírito competitivo que sempre surge nestas circunstâncias, conseguirem as melhores representações.

Nos meios rurais, a morte ou enterro do Entrudo anunciava a renovação e o revigoramento da fauna e da flora. Na maioria das aldeias beirãs e transmontanas, as mascaradas, as surriadas, a chacota, a competição entre as comadres e os compadres, a brincadeira das cacadas, as enfarruscadelas e os assaltos às habitações onde viviam moças solteiras constituíram partes integrantes dos festejos carnavalescos. Todavia, o auge incontestado das celebrações estava em muitas terras relacionado com o cortejo, julgamento e sentença ou sacrifício do galo, prática que também acontecia em quase todas as províncias espanholas, como salienta Caro Baroja.

O julgamento público, sentença e morte do galo constituiu um curioso ritual de expiação, uma catarse colectiva que expurga as culpas individuais e colectivas, imputando ao galo a responsabilidade por todos os desmandos e acontecimentos grotescos acontecidos na localidade ao longo do ano: questões passionais, desvio de águas da rega, mudança de marcos divisórios das terras, desavenças vicinais, adultério…

Desde tempos imemoriais, este galináceo representa o poder, a autoridade, a vigilância, a virilidade e a fecundidade. O seu canto matinal renova o tempo, ao anunciar, triunfantemente, um novo dia. Contudo, quando acontece fora de horas, é presságio de mau tempo, doença ou má fortuna, virtudes premonitórias que ainda hoje lhe são reconhecidas em diversos ditos, conservados por uma tradição milenar.

2. O Carnaval brasileiro, nos seus primórdios, sofreu a influência dos portugueses, especialmente dos açorianos e madeirenses, assim como dos cabo-verdianos que, na primeira metade do séc. XVIII, em vagas migratórias, rumaram àquele grande país. Neste quadro, durante mais de um centénio, os traços característicos do Carnaval, no Brasil, mantiveram-se bastante idênticos aos do Entrudo celebrado em Portugal. Com efeito, no Rio de Janeiro, só no final do primeiro quartel do séc. XX os ranchos carnavalescos, que surgiam espontaneamente e sem sofisticações de maior, deram origem às grandes sociedades e às escolas de samba. A “desportivização” do Carnaval carioca, através do processo de administração tutelar, codificação e competição entre as agremiações, ajudado pelo “empurrão” dado por músicos e intelectuais, fez surgir e crescer, num ápice, um fenómeno mediático e turístico à escala mundial. As características exóticas das alegorias apresentadas, a grandiosidade do cenário, a profusão dos intervenientes e o erotismo que transparece das danças ao ritmo do samba são contagiantes.

O Carnaval brasileiro, acontecido em tempo estival, propício à exposição dos corpos, assumiu foros de modernice, vindo a ser ridícula e grotescamente plagiado em muitas cidades e vilas portuguesas. Todavia, mau grado os elevados gastos com a preparação dos cortejos, improvisação ou construção de sambódromos à portuguesa e importação de reis e rainhas das telenovelas mais consumidas, a pintura tem ficado sempre bem distante do modelo original. Realmente, como é possível querer comparar às morenas cariocas (exercitadas nos jogos de praia e nas marchas no Calçadão) rapariguinhas brancas como neve, com “pele de galinha” provocada pelo frio?

3. Perante o que ficou exposto, parece-me meritória a ideia de, na linha adoptada no ano transacto, estruturar as comemorações carnavalescas da cidade da Guarda no enterro e nas choradelas do Entrudo, bem assim como na representação do julgamento, sentença e morte do galo.

É evidente que o processo de teatralização e enriquecimento estético deste vasto cerimonial, sublimado dos episódios bárbaros que caracterizavam os antigos ritos, permitirá a perpetuação de uma das nossas mais curiosas tradições.

E, assim, prosseguindo nesta linha de actuação, a Guarda poderá criar uma imagem de marca e pedir meças aos Carnavais portugueses mais genuínos, participados e tradicionais: as máscaras de Lazarim, os cardadores de Vale de Ílhavo, os caretos de Lagoa (Mira) e Podence (Macedo de cavaleiros) e a dança grande (ou “dança dos cus”) de Cabanas de Viriato.

Autor: Cameira Serra

 

 

logos_cmg_culturguarda